É possível haver divergências na verificação racial?

Norma de verificação da autodeclaração para negros baseia prováveis diferenças de tratamento em concursos públicos, mas, ainda é alvo de polêmicas.



Um mesmo candidato foi considerado negro em um concurso e, dois anos depois, recusado pela comissão de verificação. O detalhe: os dois certames foram realizados pela mesma banca, o Cebraspe. A partir daí, fica a dúvida se é possível que haja divergências quanto à verificação para cotas. Apesar da polêmica, a diferença de tratamento encontra respaldo em normas.

O caso aconteceu com Wanderson Barreto e foi relatado pelo Correio Braziliense. Nascido em Ceilândia (DF) e morador da cidade de Barreiras (BA), o rapaz passou em seu primeiro concurso público no ano de 2013, quando aprovado no certame promovido pela Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).

Como o concurso foi lançado três meses antes da sanção da Lei de Cotas, Barreto foi aprovado dentro das vagas para ampla concorrência. Em 2015, ele decidiu se candidatar às cotas reservadas do concurso para o INSS, organizado pelo Cebraspe.

Na ocasião, a comissão verificadora pediu que o candidato enviasse uma foto para que seu fenótipo fosse avaliado. Wanderson foi aceito, mas, apesar de classificado, acabou não sendo convocado. Em 2017, o jovem decidiu, também pelas cotas, ingressar como técnico judiciário do TRF1, para lotação em Barreiras, onde mora atualmente,

Como o certame tinha a mesma banca organizadora do Concurso INSS no qual se candidatou, o participante ficou tranquilo quanto à sua aceitação pela comissão. Entretanto, neste concurso, os procedimentos para verificação foram diferentes.

Wanderson foi convidado a comparecer perante três avaliadores para que a veracidade de sua autodeclaração fosse comprovada. O candidato, porém, recebeu a informação de sua exclusão do processo por não se adequar à legislação da reserva de vagas a negros.

Por não ter sido confirmado dentro das cotas, Barreto foi excluído do concurso e, por isso, recorreu à Justiça. Ele afirma que a situação acaba gerando outros problemas, como não entender em que grupo se enquadra.

O concurseiro afirma portar documentos oficiais que o posicionam como pardo. Ele lembra já ter sofrido preconceito por sua cor e origem humilde.

“Como consegui competir pelas cotas no INSS me senti seguro para, a partir daí, sempre me inscrever nessa condição. E como o concurso do TRF-1 também é organizado pela mesma banca, que assim me aceitou, não tive receio algum”, alega o rapaz.

O candidato reconhece a justiça da lei em reparar um problema histórico, mas, a classifica como falha em seus mecanismos de controle. Ele afirma que, ao mesmo tempo em que o participante tem o direito, fica exposto à subjetividade da avaliação de aparência. “É como se te dessem com uma mão e tirassem com outra”, aponta Wanderson.

Felizmente, a decisão tomada pela justiça foi favorável ao candidato. O juiz Marcelo Albernaz, da 21ª Vara Federal Cível do DF, aponta casos anteriores com problemas similares ao de Wanderson. No despacho, foi preterido que o participante fosse incluído na lista de aprovados nas cotas para negros, respeitando sua pontuação.

O órgão tinha cinco dias para atender à decisão. Porém, por ser de primeira instância, ainda cabe recurso.

O que diz o TRT1

Ao Correio Braziliense, o tribunal informou que as questões relacionadas ao certame devem ser encaminhadas à banca organizadora. O Cebraspe, por sua vez, informou que a candidatura às vagas reservas para negros e pardos devem respeitar as regras previstas em edital.

Em nota, a banca mencionou que, no caso do concurso para o INSS, o edital previa que seria feita a autodeclaração seguindo critérios do IBGE, além de verificação por meio do envio de foto. No TRF1, o critério adotado foi o da verificação presencial.

O Cebraspe alega que a divergência é justificada pela diferença de verificações e, também, pela própria constituição das bancas avaliadoras que são múltiplas e formadas por pessoas diversas.

A banca reforça que, nos próprios editais, estavam presentes itens que frisavam a avaliação restrita ao respectivo certame.

A nova norma

De acordo com a Portaria Normativa n° 04/2018, foi determinada a realização de procedimento de heteroidentificação nos concursos públicos. Trata-se de complemento à autodeclaração e, com ele, a condição de fenótipo autodeclarado deve ser identificada.

A autodeclaração, segundo a medida, presume relativa veracidade e deve ser confirmada pela heteroidentificação. A determinação é de que o procedimento deve estar incluso em todos os editais de certames promovidos pela administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

A verificação deve ser feita por comissão formada por cinco cidadãos residentes no país e de conduta ilibada. Ademais, o grupo deve atender ao critério da diversidade, ou seja, ser composto por membros distribuídos, igualmente, por cor, gênero e naturalidade.

Outro requisito é que os membros devem ser experientes na temática da igualdade racial, bem como o enfrentamento ao racismo. Em suma, a comissão será responsável por deliberar pela maioria, por parecer motivado.

O procedimento pode ser feito de forma presencial e filmada ou, ainda, telepresencial. Conforme a portaria, “serão consideradas as características fenotípicas do candidato ao tempo da realização do procedimento de heteroidentificação”. Em caso de dúvida a respeito do fenótipo, prevalecerá a autodeclaração.

O texto aponta, ainda, que as deliberações serão válidas, exclusivamente, para o respectivo certame, sendo excluídas para outras finalidades. O candidato que não tiver sua autodeclaração confirmada pela comissão, será excluído do certame.

Com a palavra, os especialistas

A questão da subjetividade da verificação foi discutida por especialistas. O advogado Max Kolbe aponta que a Lei 12.990/14 não estabelece critérios para a análise da condição prestada pelos cotistas. Ele frisa que não há mecanismos objetivos que afiram se um candidato pode ser enquadrado, ou não, na condição de cotista.

A objetividade da norma criada pelo Planejamento, por outro lado, foi defendida pelo coordenador do curso de direito da Universidade Católica de Brasília (UCB), Célio Stigert. De acordo com ele, a subjetividade da autodeclaração foi retirada pela inserção da banca avaliadora.

O doutorando em Direito da UnB, Gian Marco Ferreira, comenta, também junto ao Correio Braziliense, que mesmo que a banca organizadora seja a mesma, a comissão não é. Ele reforça a construção social elaborada em torno da raça, e não o consenso.

Gian lembra que, no “Brasil o fenótipo é o que motiva o racismo, mas mesmo a aparência é subjetiva”. Quanto à regra criada pela nova norma, a complexidade vai mais longe do que simples regras. “Tem mais a ver com a percepção de quem compõe a banca e do próprio candidato.”




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